sexta-feira, fevereiro 10, 2017

Cenas do Cotidiano V

Cenas do Cotidiano V
Ontem, conheci uma menina que partiu meu coração. Não no sentido romântico, mas no afetivo. Quer saber um pouco sobre a vida de menina e nossa conversa? Continue lendo!
Tudo começou ontem, com um belo dia ensolarado. Como é de costume, de tardinha, mamãe e eu fomos nos exercitar, mas discordávamos em uma parte: mamãe queria caminhar, eu queria fazer a academia ao ar livre, perto do Trapiche da Beira-Mar, pois queria encontrar alguém para brincar. Se encontrasse, ficaríamos e não, partiríamos para uma longa caminhada. Agora, entendes o porquê eu queria ficar nos aparelhos?
Alguns idosos e adultos se exercitando, nada de mais. Mas, minha salvação: crianças! As mesmas que eu havia encontrado no dia anterior, e que não tinham querido brincar comigo. As cumprimentei por educação, e comecei o alongamento. Mais tarde, mamãe me contara que estavam fofocando, se perguntando minha idade (12, para quem não sabe) e dizendo que eu era esquisita.
Esperanças quase perdidas. O alongamento estava quase terminando, as Marias Fuxiqueiras já haviam saído e mamãe já estava no último aparelho de alongamento, pronta para pegar as garrafas d’água da mesinha e caminhar. Quando, num dos meus alongamentos doidos (a maioria inclui ficar de cabeça para baixo) vi uma menininha subindo num brinquedo (aparelho, mas para ela devia ser brinquedo). Olhei para ela e ela para mim, me dando um “oi” com a palma da mão. Achas que eu pensei duas vezes? Dirigi-me a ela.
Chegando perto do brinquedo onde ela estava subindo, subi também com a maior agilidade (é um dos que eu fico de cabeça para baixo) e também a cumprimentei e, sério, tive que me esforçar para ouvir a resposta. Ela falava muito baixinho, como se temesse falar demais e ser repreendida por isso. Perguntei seu nome, e juro que nunca vou esquecer: Rihanna, ou seja lá como escreve, mas eu captei. Junto com seu nome, disse-me que as pessoas costumavam chama-la de “Fofucha”. Eu entendia. Como alguém tão fofa e delicada poderia ter outro apelido senão “Fofucha”? Era perfeito!
Havia começado muito bem. Mamãe, vendo que eu arrumara amizade, não quis acabar com a coisa e decidiu ficar, mas ainda me olhava como se ainda quisesse me trucidar (ei, estou falando a verdade; você não conhece minha mãe!). Preferi dar atenção para Rihanna, e, naturalmente, pedi se queria brincar e do quê. Não me respondeu, apenas ficou comigo naquele brinquedo e convidou-me para ir aos outros. Aceitei o convite e tentei soltá-la quanto ao jeitinho apertado dela. Brinquei, dei atenção e carinho. Aí que surgiu a primeira rachadura no meu coração.
Ela havia me dito que estava com saudades da mãe. Disse-me assim:
_A gente é meio pobre, então ela tem que trabalhar até tarde para...
Achei que ela diria “comer” no fim da frase, mas parou e disse:
__... Juntar um dinheiro, você sabe.
É claro que entendia. Que pessoa no mundo não quer juntar um dinheiro para, pelo menos, ter um mínimo de conforto e não passar fome? Disse-me que sentia saudades dela. E que, todos os dias, de manhã, quando a mãe saía trabalhar, ela tentava se machucar ou fingir cair da cama para a mãe ficar cuidando dela e não sair trabalhar. Queria um pouco de carinho. Como todo o mundo quer. Perguntei se tinha irmãos e no que a mãe trabalhava e ela me respondeu:
_Vende coisas.
Tudo bem. Perguntei o que ela vendia. Rihanna resmungou um pouco e eu não entendi nada, então ela me disse que a mãe dela “botava gasolina nos carros”. Ah, era frentista. Mudei de assunto, porque não queria falar de uma coisa da qual ela sentia falta e perguntei onde ela estudava. Tímida, ele me disse:
_Estudava na creche, mas agora vou para o colégio A. e eu ouvi dizer que na turma que eu vou tem uma matéria de massinha de modelar.
_Sério! Que legal!
Tentei parecer surpresa para não desestimular a garota, porque parecia ser algo que ela estimava muito. E Rihanna acrescentou, com pesar:
_É, mas a (nota: ela disse um nome que eu não lembro), que é minha irmã, não brinca mais de massinha de modelar. Ela não pode.
Eu perguntei por que não podia, pois eu tenho 12 anos e, de vez em quando, ainda me divirto com a massinha de modelar criando formas e misturando as massas. A Fofucha me respondeu que não podia, porque é adolescente, e quem é adolescente não faz isso. Fiquei pensando, cá com meus botões: por que não? Existe alguma lei que diga que não? Não brinca porque é fresca, porque tem vergonha. E acima de tudo, porque valoriza a opinião dos outros acima da própria, e uma prova disso é não brincar com a própria irmã.
Brincamos um pouco e ela pediu se eu não queria ir ao Trapiche. Concordei, eu também queria ir. Pedi onde seus pais estavam, e ela apontou para o grupo mais entediado que havia lá. Uma adolescente com cara de nojo, um adolescente que parecia que tinha cheirado rato podre que poderia ser tanto namorado quanto irmão da garota e o pai, que não era muito melhor que os filhos. Rihanna, a Fofucha, pediu se poderia. Achei que eles não iriam deixá-la ou o papo desinteressante (para mim) estava tão interessante (para eles) que nem ligavam a mínima para a Fofucha. Depois de ela meter-se na frente deles e interromper timidamente a conversa que eles se ligaram que tinham uma filha/irmã (Oh, sério, quase esqueço que você existe mesmo sendo da minha família! Desculpe-me, eu estava atarefado e não foi minha intenção!) e a deixaram ir comigo.
Segunda vez que uma rachadura, dessa vez mais profunda, surge em meu coração. No decorrer do trapiche, fizemos carinho num cachorro e ela me contou que também tinha o seu, e que a fazia feliz. Fiquei contente que, pelo menos, ela falasse de algo que a deixava alegre. Quando já saíamos do trapiche, ela me abraçou. Não constrangida, como muitas pessoas de hoje em dia que tem receio de sequer encostar sua mão na do outro. Foi um abraço carinhoso, como se eu estivesse indo embora e ela não quisesse. Senti-me um lixo por não poder fazer nada por ela.
Ela falou-me que colecionava conchinhas. Catei muitas para ela, todas bonitas. E perguntei para ela, já que estava distraída e talvez me desse uma resposta sincera, como o pai dela era. Ela disse que ele era (muito) legal, mas às vezes ela o desobedecia e... Completei a frase nos meus pensamentos com uma única palavra: “apanho”. Que ótimo, eu havia tocado na ferida. Foi aí que, enfim, meu coração rachou de vez e despencou para não sei onde. Ela largou as conchinhas como se não valessem nada, conversamos mais um pouco e ela abraçou-me com carinho. Eu abracei-a também. Então ela disse:
_Eu te amo.
Segurei as lágrimas para largá-las no caminho, e contar para uma das únicas pessoas no mundo que eu sabia que me ouviria: mamãe. Pedi para minha mãe se poderíamos ir caminhar, e ela entendeu. Despedi-me da Fofucha e fomos pela Beira-Mar. Larguei todo o pesar em cima de minha mãe. Disse o quanto ele era carente. O quanto ela sofria. Contei tudo isso que contei para ti, leitor (a). Onde, no mundo, eu acharia uma criança que me conheceria e dissesse que me amava? Talvez eu fosse a única que dei um carinho, uma atenção para aquela menina. Como bem disse minha amada mãe, “talvez tu fosses a melhor coisa que aconteceu no dia daquela menina”. E, o mais interessante: ela não foi crítica comigo como aquelas meninas que tinha encontrado. Agarrou-se a mim como um náufrago em uma ilha.
Falando em ilha, como Florianópolis pode se chamar Ilha da Magia se a desgraça, as surras, a carência das pessoas não é mágica para ninguém? Como, com tanta desgraça no mundo, essa Ilha pode estar alheia a tudo e autodenominar-se “mágica”? É mágico que aquela menina, talvez, não tivesse o que comer? Ela tinha me contado que eram seis irmãos e mais os pais. É mágico que apenas uma mulher frentista que ganha mais ou menos um salário mínimo por mês tenha que sustentar oito bocas? E, além de tudo, é mágico uns terem tanto e outros mendigarem apenas por carinho? Eu respondo. Não é mágico.