Cenas do cotidiano I
Ser humano. Já tão anestesiado pelas porcarias que dominam sua vida, não
se interessam mais nem por seus iguais. Moradores de rua suplicam por uma
mísera esmola, passa fome, frio, medo. Ignoramos tudo, porque nos é preferível
colocar fones de ouvido e fingir que não existe. É mais fácil do que ajudar um
igual. Um ser vivo que sente, pensa, age. Existe. Ignorado.
Tudo inicia num domingo, enevoado e um pouco
frio. Nossos planos para ir à praia foram frustrados, em decorrer da água fria.
Em vez disso, para nos aquecer, fomos nos aparelhos da academia ao ar livre,
perto do trapiche, na Beira-Mar Norte. Depois de certo tempo, já com dor de
cabeça (eu costumo ficar de ponta cabeça em todos os aparelhos, então era
normal uma dorzinha), sentei-me numa mesa de pedra para tomar água e logo papai
se juntou a mim. Foi ai que o vimos.
A ave estava nadando em nossa
direção, um tanto desengonçada. Suas remadas eram mínimas e fracas, como se não
tivesse mais forças e que sua vida dependesse disso. E, depois, eu não
duvidaria desta informação. Cansada, conseguiu impulsionar-se para fora d’água
com uma batida de asas, que custou muito do seu esforço. Aprumou-se numa pedra
e ficou por ai, tremendo e recuperando suas forças.
Fiquei cuidando, pelo olhar, o
que aquele lindo ser faria. Logo voaria? Morreria? Nadaria? Logo, falei para
mamãe que se apressou em dar uma espiada. Ela ficou preocupada, pois o bichinho
poderia estar sofrendo de uma hipotermia. Como não havíamos pegado nosso
celular, pedimos um emprestado de uma senhora que também se exercitava no
local. Explicamos a situação e ela cedeu seu aparelho telefônico para uma
ligação. Mamãe telefonou para o 190, que a mandou ligar para tal número, que
pediu que ela ligasse para número tal e assim por diante.
Depois de uma hora (pareceu-me
uma eternidade, já que me recusava a desgrudar os olhos do pássaro) mamãe
estava prestes a esgoelar alguém, tal era seu nervosismo. A ave (coitada!) já
havia feito inúmeras tentativas de se aquecer e voar, porém, nenhuma resultava
em nada. Tremendo, ela abria e fechava as asas, desesperada. Mais desesperada
quando se debateu contra as pedras, tentando numa inútil tentativa, voar.
Surpreendo-me ao ver a delicadeza
das pessoas de hoje em dia. Vendo o estado da pobre ave, preocuparam-se em
apenas achar o melhor ângulo para uma foto. Ouvi até uns dizendo que isso era
normal (experimente bater a cabeça contra uma pedra: depois me diga se aquilo é
normal) e que o pássaro estava apenas esperando os peixes (odiei ouvir aquilo:
que tipo de ave treme de frio e se bate contra as pedras para alimentar-se?).
Apareceu, depois de mais um
tempo, um fotógrafo apreciando a paisagem. Naturalmente, papai foi conversar
com ele. Infelizmente, fotografar não era profissão para o homem, e sim, hobby.
Talvez a polícia ambiental e outras dessem mais valor ao animal se a imprensa
estivesse vendo. Do mesmo jeito, o homem tirou fotos do animal e mandou para o
e-mail da mamãe, que ligou mais uma vez para a polícia ambiental etc.
Finalmente, apareceu o primeiro
guarda. Decepcionamo-nos ao saber que ele estava fazendo apenas a ronda do dia
no trapiche, mas concordou em reforçar aviso sobre o pobre animal. De pouquinho
em pouquinho, a ave recuperava suas forças, embora ainda tremesse incansavelmente.
Estava mais ousada, batia as asas com mais força e estava mais atenta ao
ambiente.
Ainda não entendo porque, para todos os números que fizemos uma ligação,
jogaram o problema para cima, como uma batata quente estragada que ninguém quer
e passa para o outro. Uma vida, passando de mãos em mãos, chamada por chamada
telefônica. Se dependesse deles e a ave estivesse prestes a morrer, morreria
mesmo.
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