Cenas do Cotidiano V
Ontem, conheci uma menina
que partiu meu coração. Não no sentido romântico, mas no afetivo. Quer saber um
pouco sobre a vida de menina e nossa conversa? Continue lendo!
Tudo começou ontem, com um
belo dia ensolarado. Como é de costume, de tardinha, mamãe e eu fomos nos
exercitar, mas discordávamos em uma parte: mamãe queria caminhar, eu queria
fazer a academia ao ar livre, perto do Trapiche da Beira-Mar, pois queria
encontrar alguém para brincar. Se encontrasse, ficaríamos e não, partiríamos
para uma longa caminhada. Agora, entendes o porquê eu queria ficar nos
aparelhos?
Alguns idosos e adultos se
exercitando, nada de mais. Mas, minha salvação: crianças! As mesmas que eu
havia encontrado no dia anterior, e que não tinham querido brincar comigo. As
cumprimentei por educação, e comecei o alongamento. Mais tarde, mamãe me
contara que estavam fofocando, se perguntando minha idade (12, para quem não
sabe) e dizendo que eu era esquisita.
Esperanças quase perdidas. O
alongamento estava quase terminando, as Marias Fuxiqueiras já haviam saído e
mamãe já estava no último aparelho de alongamento, pronta para pegar as
garrafas d’água da mesinha e caminhar. Quando, num dos meus alongamentos doidos
(a maioria inclui ficar de cabeça para baixo) vi uma menininha subindo num
brinquedo (aparelho, mas para ela devia ser brinquedo). Olhei para ela e ela
para mim, me dando um “oi” com a palma da mão. Achas que eu pensei duas vezes?
Dirigi-me a ela.
Chegando perto do brinquedo
onde ela estava subindo, subi também com a maior agilidade (é um dos que eu
fico de cabeça para baixo) e também a cumprimentei e, sério, tive que me
esforçar para ouvir a resposta. Ela falava muito baixinho, como se temesse
falar demais e ser repreendida por isso. Perguntei seu nome, e juro que nunca
vou esquecer: Rihanna, ou seja lá como escreve, mas eu captei. Junto com seu
nome, disse-me que as pessoas costumavam chama-la de “Fofucha”. Eu entendia.
Como alguém tão fofa e delicada poderia ter outro apelido senão “Fofucha”? Era
perfeito!
Havia começado muito bem.
Mamãe, vendo que eu arrumara amizade, não quis acabar com a coisa e decidiu
ficar, mas ainda me olhava como se ainda quisesse me trucidar (ei, estou
falando a verdade; você não conhece minha mãe!). Preferi dar atenção para
Rihanna, e, naturalmente, pedi se queria brincar e do quê. Não me respondeu,
apenas ficou comigo naquele brinquedo e convidou-me para ir aos outros. Aceitei
o convite e tentei soltá-la quanto ao jeitinho apertado dela. Brinquei, dei
atenção e carinho. Aí que surgiu a primeira rachadura no meu coração.
Ela havia me dito que estava
com saudades da mãe. Disse-me assim:
_A gente é meio pobre, então
ela tem que trabalhar até tarde para...
Achei que ela diria “comer”
no fim da frase, mas parou e disse:
__... Juntar um dinheiro,
você sabe.
É claro que entendia. Que
pessoa no mundo não quer juntar um dinheiro para, pelo menos, ter um mínimo de
conforto e não passar fome? Disse-me que sentia saudades dela. E que, todos os
dias, de manhã, quando a mãe saía trabalhar, ela tentava se machucar ou fingir
cair da cama para a mãe ficar cuidando dela e não sair trabalhar. Queria um
pouco de carinho. Como todo o mundo quer. Perguntei se tinha irmãos e no que a
mãe trabalhava e ela me respondeu:
_Vende coisas.
Tudo bem. Perguntei o que
ela vendia. Rihanna resmungou um pouco e eu não entendi nada, então ela me
disse que a mãe dela “botava gasolina nos carros”. Ah, era frentista. Mudei de
assunto, porque não queria falar de uma coisa da qual ela sentia falta e
perguntei onde ela estudava. Tímida, ele me disse:
_Estudava na creche, mas
agora vou para o colégio A. e eu ouvi dizer que na turma que eu vou tem uma
matéria de massinha de modelar.
_Sério! Que legal!
Tentei parecer surpresa para
não desestimular a garota, porque parecia ser algo que ela estimava muito. E
Rihanna acrescentou, com pesar:
_É, mas a (nota: ela disse
um nome que eu não lembro), que é minha irmã, não brinca mais de massinha de
modelar. Ela não pode.
Eu perguntei por que não
podia, pois eu tenho 12 anos e, de vez em quando, ainda me divirto com a massinha
de modelar criando formas e misturando as massas. A Fofucha me respondeu que
não podia, porque é adolescente, e quem é adolescente não faz isso. Fiquei
pensando, cá com meus botões: por que não? Existe alguma lei que diga que não?
Não brinca porque é fresca, porque tem vergonha. E acima de tudo, porque
valoriza a opinião dos outros acima da própria, e uma prova disso é não brincar
com a própria irmã.
Brincamos um pouco e ela
pediu se eu não queria ir ao Trapiche. Concordei, eu também queria ir. Pedi
onde seus pais estavam, e ela apontou para o grupo mais entediado que havia lá.
Uma adolescente com cara de nojo, um adolescente que parecia que tinha cheirado
rato podre que poderia ser tanto namorado quanto irmão da garota e o pai, que
não era muito melhor que os filhos. Rihanna, a Fofucha, pediu se poderia. Achei
que eles não iriam deixá-la ou o papo desinteressante (para mim) estava tão
interessante (para eles) que nem ligavam a mínima para a Fofucha. Depois de ela
meter-se na frente deles e interromper timidamente a conversa que eles se
ligaram que tinham uma filha/irmã (Oh, sério, quase esqueço que você existe
mesmo sendo da minha família! Desculpe-me, eu estava atarefado e não foi minha
intenção!) e a deixaram ir comigo.
Segunda vez que uma
rachadura, dessa vez mais profunda, surge em meu coração. No decorrer do
trapiche, fizemos carinho num cachorro e ela me contou que também tinha o seu,
e que a fazia feliz. Fiquei contente que, pelo menos, ela falasse de algo que a
deixava alegre. Quando já saíamos do trapiche, ela me abraçou. Não
constrangida, como muitas pessoas de hoje em dia que tem receio de sequer
encostar sua mão na do outro. Foi um abraço carinhoso, como se eu estivesse
indo embora e ela não quisesse. Senti-me um lixo por não poder fazer nada por
ela.
Ela falou-me que colecionava
conchinhas. Catei muitas para ela, todas bonitas. E perguntei para ela, já que
estava distraída e talvez me desse uma resposta sincera, como o pai dela era.
Ela disse que ele era (muito) legal, mas às vezes ela o desobedecia e...
Completei a frase nos meus pensamentos com uma única palavra: “apanho”. Que
ótimo, eu havia tocado na ferida. Foi aí que, enfim, meu coração rachou de vez
e despencou para não sei onde. Ela largou as conchinhas como se não valessem
nada, conversamos mais um pouco e ela abraçou-me com carinho. Eu abracei-a
também. Então ela disse:
_Eu te amo.
Segurei as lágrimas para largá-las
no caminho, e contar para uma das únicas pessoas no mundo que eu sabia que me
ouviria: mamãe. Pedi para minha mãe se poderíamos ir caminhar, e ela entendeu.
Despedi-me da Fofucha e fomos pela Beira-Mar. Larguei todo o pesar em cima de
minha mãe. Disse o quanto ele era carente. O quanto ela sofria. Contei tudo
isso que contei para ti, leitor (a). Onde, no mundo, eu acharia uma criança que
me conheceria e dissesse que me amava? Talvez eu fosse a única que dei um
carinho, uma atenção para aquela menina. Como bem disse minha amada mãe, “talvez
tu fosses a melhor coisa que aconteceu no dia daquela menina”. E, o mais
interessante: ela não foi crítica comigo como aquelas meninas que tinha
encontrado. Agarrou-se a mim como um náufrago em uma ilha.
Falando em ilha, como
Florianópolis pode se chamar Ilha da Magia se a desgraça, as surras, a carência
das pessoas não é mágica para ninguém? Como, com tanta desgraça no mundo, essa
Ilha pode estar alheia a tudo e autodenominar-se “mágica”? É mágico que aquela
menina, talvez, não tivesse o que comer? Ela tinha me contado que eram seis
irmãos e mais os pais. É mágico que apenas uma mulher frentista que ganha mais
ou menos um salário mínimo por mês tenha que sustentar oito bocas? E, além de
tudo, é mágico uns terem tanto e outros mendigarem apenas por carinho? Eu
respondo. Não é mágico.